domingo, 2 de novembro de 2014

Todo Morto Vira Santo - Pt. 02



4.
O velório foi simples, era o que dava pra pagar à vista, a família achou melhor não exagerar nos gastos, pra quê, né? Tereza e os filhos, em compensação, fizeram a última vontade de Hermínio. Pelo menos tentaram. Não puseram ele no caixão de camiseta, calça jeans e havaianas, nem tocaram pagode, mas pelo menos, atenderam a vontade dele de não ser enterrado de terno e gravata.

Ele não tinha deixado escrito em lugar algum, não tinha deixado testamento, mas era uma das brincadeiras mórbidas que costumava fazer, dizia que não queria mais colocar um terno na vida, bastava a vez que tinha vestido no casamento. Dizia que era solenidade demais, o morto já estava fodido mesmo, que diferença fazia a roupa que junto a ele se decomporia debaixo da terra?

O enterro aconteceu, o padre falou sobre o fim da vida e a vida eterna, a sua mensagem de paz e obstinação, cumpriu o dever do ofício: deprimiu um pouco a todos. Ninguém chorou, só o netinho de Hermínio, de 6 anos, apontou o dedo pro caixão e disse: Ei, veado! O avô não riu dessa vez. Ninguém riu, na verdade. E a mãe do menino lhe deu um puxão de cabelo e prometeu uma surra quando chegasse em casa, então, sim, ele chorou seu choro escandaloso.


5.
Naquela noite, Tereza não dormiu em casa, não dormiu, na verdade. A decisão dos filhos, que sabiam que ela precisava de apoio, foi lhe dar abrigo. Dorme lá em casa mãe, disse o mais velho. Ela agradeceu, relutando, disse que estava tudo bem, que queria ir pra casa, que lá tinha uma cama conhecida, que seria melhor, mas no fim, aceitou o convite. Era a primeira vez que passava a noite fora de casa em muito tempo.

Às duas da manhã, todos dormiam, Tereza não. Ela pensava na vida dali pra frente, e se sentia um pouco mal por se sentir um tanto aliviada, livre, finalmente livre. Ela sentia que não podia ter um sentimento desses, ao mesmo tempo, se desculpava considerando a teimosia do marido que não se cuidava, que não estava nem aí.

Virando na cama de um lado pra outro, sem achar uma posição confortável, ela ficava um tempo com o pensamento aí, entre se culpar e se desculpar, então, passava a pensar na realização dos desejos que andava tendo. Pensava nos jovens, nos romances que viveria, no tempo que poderia aproveitar. E então, voltava a sentir culpa, pensava que não merecia a liberdade que agora teria, merecia sim, ela consertava, mas não daquele jeito, não precisava ser daquele jeito. Era melhor ter brigado, xingado, agredido...

Aí, pensava de novo, na ausência do marido, sentia que podia voar agora que não tinha mais aquele peso todo às costas. E então, de novo, se deixava tomar por um remorso, como ele ainda estivesse ali e ela não pudesse fazer o que queria fazer, como fosse injusto ter desejos. Não era, ela insistia. E lá começava com os sonhos de solteira. Agora tinha a casa só para si, ia redecorá-la inteira, ia colocar cortinhas, abajours, mesinhas e tudo mais que desse vontade. Ia pintar também, tinha uma cor que adorava mas que Hermínio não gostava.

A vida seria outra. Mal podia esperar.


6.
De pensamento em pensamento, Tereza viu amanhecer o dia pela janela do quarto, desde aquele azul inconfundível da madrugada, até o comecinho do dia, quando o sol está surgindo, ainda muito fraco, quase uma daquelas luminárias circulares pendurada no céu sob o horizonte.

Sem perder mais tempo, ergueu, e demorou por ali só o tempo suficiente para escrever um pequeno bilhete agradecendo a hospitalidade do filho e avisando que estava indo pra casa, também se desculpava por sair assim. Mas era preciso. Era preciso. A vontade bateu nela de tal modo que Tereza não podia resistir, estava animadíssima com a ideia de ter a casa só pra si e a sensação de ter a vida de volta, tanto que apesar da noite mal dormida, ao chegar em casa, não estava com um pingo de sono.

Tomou um banho, trocou a roupa e começou a arrumar a casa, a ir tirando os resquícios do marido dali o mais rápido possível. Varreu, lavou, esfregou, tirou cervejas do freezer, muitas cervejas no freezer, aquele bêbado desgraçado não era tão bom assim para estocar alimentos.

Pegou a roupa suja juntou com a limpa, que tirou do guarda roupas do casal, colocou tudo num bolo só dentro de um saco de lixo. Creme pra barbear, cueca suja, latas de cerveja vazias, algumas bitucas de cigarro. A limpeza avançava e cada vez mais a presença do porco ia desaparecendo e o chiqueiro voltava a ser uma casa.

Tereza não parava, era preciso limpar mais, apagar mais. Havia ainda muitos resquícios. Saco plástico no controle remoto. Ideia de quem? Dele. Imã de geladeira com formato de botija e número da distribuidora. Coisa de quem? Dele.


7.
Duas semanas se passaram. Tereza chegou em casa, tomou um banho e foi para a cozinha, fez um macarrão com um molho qualquer e gritou: Ô porcão, eu não vou levar o teu… E esperando a resposta, que de modo algum viria, se deu conta de que o porcão não estava mais ali. Nunca mais estaria. E esse nunca mais apareceu de modo categórico, definitivo.

E a imagem dele largado no sofá com uma lata de cerveja em cima da barriga inflada, apático, causou a pergunta: como foi que aconteceu? Tereza ficou um tempo com o pensamento na cabeça, não por vontade, ela o repelia e ele, como um daqueles cachorros de rua, famintos, voltava, abanava o rabo, latia.

Como aconteceu? Como aquele Hermínio jovem, chamado de sansão, pela cabeleira e pelo porte, tinha se transformado num gordo careca preguiçoso filho da puta? Tereza não sabia. Havia perdido algo pelo caminho? O que seria? Aquela noite, não dormiu bem, virou-se para um lado e outro da cama. Andou pela casa, bebeu uns goles de vinho (aquilo sim era bebida pra ter em casa). Foi tomar banho, talvez um banho lavasse aquilo da sua cabeça.

Terminou o banho e com a questão ainda ali, diante de si, latindo furiosa. Fez o que há muito tempo não fazia, deu uma boa olhada em si mesma no espelho do banheiro e reparando em como estava, as rugas, o cabelo, o cansaço dos olhos, os lábios ressecados, pensando em tudo o que tinha passado e em como era, reformulou a pergunta: O que a vida fez com a gente, Hermínio? E pensando em tudo o que aconteceu naquele casamento, refez mais uma vez a questão: O que fizemos a nós mesmos?

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